Artigo publicado originalmente em Socialism, capitalism and economic growth. Essays presented to Maurice Dobb. Cambridge, 1967. Os subtítulos abaixo são uma decisão editorial.
Há quase 30 anos publiquei um ensaio Sobre a teoria econômica do socialismo. [1] Pareto e Barone demonstraram que as condições de equilíbrio econômico em uma economia socialista poderiam ser expressas por um sistema de equações simultâneas. Os preços resultantes dessas equações fornecem uma base para a contabilidade econômica racional no socialismo (somente o aspecto do problema de contabilidade que envolve o equilíbrio estático estava sendo considerado naquele momento). Mais tarde, Hayek e Robbins sustentaram que as equações de Pareto-Barone não tinham consequências práticas: a solução de um sistema de milhares ou mais equações simultâneas seria na prática impossível e, consequentemente, o problema prático da contabilidade econômica no socialismo permanecia insolúvel.
Em meu ensaio, refutei a argumentação de Hayek-Robbins, demonstrando como um mecanismo de mercado poderia ser estabelecido em uma economia socialista que levasse à solução das equações simultâneas por meio de um procedimento empírico de tentativa e erro. Começando com um conjunto arbitrário de preços, aumenta-se o preço sempre que a demanda exceder a oferta e diminui-se sempre que se der o oposto. Por meio desse processo de tatonnements [tentativas-e-erros], descrito pela primeira vez por Walras, os preços finais de equilíbrio são gradativamente alcançados. Estes são os preços que satisfazem o sistema de equações simultâneas. Presumia-se sem questionamento que o processo de tentativa-e-erro de fato converge para o sistema de preços de equilíbrio.
Se eu fosse reescrever meu ensaio hoje, minha tarefa seria muito mais simples. Minha resposta para Hayek e Robbins seria: mas então, qual é o problema?
Coloquemos as equações simultâneas em um computador eletrônico e obteremos a solução em menos de um segundo. O processo do mercado, com suas incômodas e embaraçosas tentativas-e-erros, parece algo antiquado. Na verdade, ele poderia ser considerado como um dispositivo computacional da era pré-eletrônica.
Equações simultâneas
O mecanismo de mercado e o procedimento de tentativa e erro propostos no meu ensaio realmente desempenhavam o papel de um dispositivo de computação para resolver um sistema de equações simultâneas. A solução era encontrada por um processo de iteração que se assumia como sendo convergente. As iterações se baseavam em um princípio de feedback [resposta e retroalimentação] operando de forma a gradualmente eliminar os desvios do equilíbrio. Previa-se que o processo funcionaria como um servomecanismo, que, por meio da ação do feedback, elimina automaticamente os distúrbios. [2]
O mesmo processo pode ser implementado por um análogo em uma máquina eletrônica que simule o processo de iteração implícito nas tentativas-e-erros do mecanismo de mercado. Esse análogo, um (servo-mecanismo) eletrônico, simula o funcionamento do mercado; essa afirmação, entretanto, pode ser invertida: o mercado simula seu análogo, o computador eletrônico. Em outras palavras, o mercado pode ser considerado como um computador sui generis que serve para resolver um sistema de equações simultâneas. Ele opera como uma máquina analógica: um servomecanismo baseado no princípio de feedback. O mercado pode ser considerado como um dos mais antigos dispositivos históricos de resolução de equações simultâneas. O interessante é que o mecanismo de resolução opera não por meio de um processo físico, mas mediante um processo social. Enfim, os processos sociais também podem servir de base para a operação de dispositivos de feedback que levem à solução de equações por iteração.
O computador no socialismo
Os administradores das economias socialistas atuais possuem dois instrumentos de contabilidade econômica. Um é o computador eletrônico (digital ou analógico), o outro é o mercado. Também nos países capitalistas, o computador eletrônico é, em certa medida, utilizado como instrumento de contabilidade econômica. A experiência demonstra que para um grande número de problemas a aproximação linear é o suficiente; daí a ampla utilização de técnicas de programação linear. Em uma economia socialista, tais técnicas têm um escopo de aplicação ainda mais abrangente: elas podem ser aplicadas à economia nacional como um todo.
Pode ser interessante comparar os méritos relativos do mercado e do computador em uma economia socialista. O computador tem a vantagem indiscutível da velocidade muito superior. O mercado é um servomecanismo complicado e de funcionamento lento. Seu processo de iteração opera com defasagens e oscilações consideráveis e pode até mesmo nem ser convergente. Isso fica exposto pelos ciclos da teia de aranha, de inventário e por outros ciclos de reinvestimento, bem como pelo ciclo geral dos negócios. Portanto, as tentativas-e-erros walrasianas estão repletas de flutuações desagradáveis e podem também revelar-se divergentes. A este respeito, o computador eletrônico mostra uma superioridade incontestável. Ele trabalha com enorme velocidade, não produz flutuações nos processos econômicos reais e a convergência de suas iterações é assegurada pela sua própria construção.
Outra desvantagem do mercado como servomecanismo é que suas iterações causam efeitos sobre a renda. Qualquer alteração nos preços causa ganhos e perdas a diversos grupos de pessoas. Para a gestão de uma economia socialista, isso cria vários problemas sociais relacionados a esses ganhos e perdas – sobretudo, pode mobilizar uma resistência conservadora ao processo de iteração envolvido no uso do mercado como um servomecanismo.
No longo prazo
Tudo isso, contudo, não significa que o mercado não tenha seus méritos relativos. Em primeiro lugar, mesmo os computadores eletrônicos mais poderosos possuem uma capacidade limitada. Pode haver (e há) processos econômicos tão complexos em termos do número de mercadorias e do tipo de equações envolvidas que nenhum computador seja capaz de abordá-los; ou então, pode ser caro demais construir computadores de tão grande capacidade. Nesses casos, nada resta a não ser o uso do antiquado servomecanismo de mercado, que tem uma capacidade de funcionamento bem mais abrangente.
Em segundo lugar, o mercado está institucionalmente incorporado na atual economia socialista. Em todos os países socialistas (com exceção de certos períodos em que o racionamento foi utilizado) os bens de consumo são distribuídos à população por meio do mercado. Aqui, o mercado é uma instituição social existente e é inútil aplicar um dispositivo de contabilidade alternativo. O computador eletrônico pode ser utilizado para fins de prognóstico, mas as previsões computadas devem ser posteriormente confirmadas pelo funcionamento real do mercado.
Uma importante limitação do mercado é que ele trata o problema da contabilidade apenas em termos estáticos – ou seja, como um problema de equilíbrio; ele não fornece uma base suficiente para a solução dos problemas do crescimento e desenvolvimento. Em particular, não fornece uma base adequada para o planejamento econômico de longo prazo. Para se planejar o desenvolvimento econômico, os investimentos de longo prazo devem ser retirados do mecanismo de mercado e baseados no julgamento da política econômica de desenvolvimento. Isso ocorre porque os preços atuais refletem os dados atuais, enquanto que o investimento muda os dados por meio da criação de novas rendas, novas condições técnicas de produção e, muitas vezes, também pela criação de novos desejos (a criação de uma indústria de televisão cria a demanda por aparelhos de televisão, e não o contrário). Em outras palavras, o investimento altera as condições de oferta e demanda que determinam os preços de equilíbrio. Isso vale tanto para o capitalismo quanto para o socialismo.
Pelas razões indicadas, o planejamento do desenvolvimento econômico de longo prazo, via de regra, se fundamenta em considerações gerais de política econômica e não em cálculos baseados em preços atuais. No entanto, a teoria e a prática da programação matemática (linear e não-linear) permitem introduzir uma contabilidade econômica rigorosa neste processo. Após a definição de uma função objetivo (por exemplo, maximizar o aumento da renda nacional em um determinado período) e de certas restrições, os preços-sombra futuros podem ser calculados. Esses preços-sombra servem como um instrumento de contabilidade econômica em planos de desenvolvimento de longo prazo. Os preços reais de equilíbrio do mercado não são suficientes aqui, é necessário o conhecimento dos futuros preços-sombra previstos.
A programação matemática acaba sendo um instrumento essencial de planejamento econômico otimizado de longo prazo. Na medida em que isso envolve a solução de um grande número de equações e desigualdades, o computador eletrônico é indispensável. A programação matemática com a assistência de computadores eletrônicos torna-se o instrumento fundamental do planejamento econômico de longo prazo, bem como da solução de problemas econômicos dinâmicos de escopo mais limitado. Aqui, o computador eletrônico não substitui o mercado: ele cumpre uma função que o mercado nunca foi capaz de desempenhar.
Notas
[1] The review of economic studies, Londres, 1936 e 1937. Reimpresso em O. Lange e F. M. Taylor, On the economic theory of socialism, editado por B. E. Lippincott – Minneapolis, 1938. (Disponível em português em https://jacobin.com.br/2023/09/sobre-a-teoria-economica-do-socialismo/).
[2] Cf. Josef Steindl, Servo-mechanisms and controllers in economic theory and policy, em On political economy and econometrics, essays in honour of Oskar Lange, Varsóvia, 1964, pp. 552— 554, especialmente.
Sobre os autores
Oskar Lange
foi um economista e diplomata marxista polonês que apresentou contribuições fundamentais à economia neoclássica à partir de um ponto de vista socialista, inclusive no famoso "debate sobre o cálculo econômico socialista".